UM DOADOR UNIVERSAL Tomo um táxi e mando tocar

UM DOADOR UNIVERSAL

Tomo um táxi e mando tocar para o hospital do Ipase. Vou visitar um amigo que foi operado. O motorista volta-se para mim:
-O senhor não está doente e agora não é hora de visita. Por acaso é médico? Ultimamente ando sentindo um negócio esquisito aqui no lombo…
-Não sou médico.
Ele deu uma risadinha.
-Ou não quer dar uma consulta de graça, hein, doutor? É isso mesmo, deixa para lá. Para dizer a verdade, não tem cara de médico. Vai doar sangue.
-Quem, eu?
-O senhor mesmo, quem havia de ser? Não tem mais ninguém aqui.
-Tenho cara de quem vai doar sangue?
-Para doar sangue não precisa ter cara, basta ter sangue. O senhor veja o meu caso, por exemplo. Sempre tive vontade de doar sangue. E doar mesmo de graça, ali no duro. Deus me livre de vender meu próprio sangue: não paguei nada por ele. Escuta aqui uma coisa, quer saber o que mais, vou doar meu sangue e é já.
Deteve o táxi à porta do hospital, saltou ao mesmo tempo que eu, foi entrando:
-E é já. Esse negócio tem de ser assim: a gente sente vontade de fazer uma coisa, pois então faz e acabou-se. Antes que seja tarde: acabo desperdiçando esse sangue meu por aí, em algum desastre. Ou então morro e ninguém aproveita. Já imaginou quanto sangue desperdiçado por aí nos que morrem?
-E nos que não morrem? - limitei-me a acrescentar.
-Isso mesmo. E nos que não morrem! Essa eu gostei. Está se vendo que o senhor é moço distinto. Olhe aqui uma coisa, não precisa pagar a corrida.
Deixei-me ficar, perplexo, na portaria (e ele tinha razão, não era hora de visitas) enquanto uma senhora reclamava seus serviços:
-Meu marido está saindo do hospital, não pode andar direito…
-Que é que tem seu marido, minha senhora?
-Quebrou a perna.
-Então como é que a senhora queria que ele andasse direito?
-Eu não queria. Isto é, queria… Por isso é que estou dizendo - confundiu- se a mulher. -O seu táxi não está livre?
-O táxi está livre, eu é que não estou. A senhora vai me desculpar, mas vou doar sangue. Ou hoje ou nunca.
E gritou para um enfermeiro que ia passando e que nem o ouviu:
-Você aí, ô, branquinho, onde é que se doa sangue?
Procurei intervir:
-Atenda a freguesa… O marido dela…
-Já sei: quebrou a perna e não pode andar direito.
-Teve alta hoje. - acudiu a mulher, pressentindo simpatia.
-Não custa nada – insisti. - Ele precisa de táxi. A esta hora…
-Eu queria doar sangue - vacilou ele. - A gente não pode nem fazer uma caridade, poxa!
-Deixa de fazer uma e faz outra, dá na mesma.
Pensou um pouco, acabou concordando:
-Está bem. Mas então faço o serviço completo: vai de graça. Vamos embora. Cadê o capenga?
Afastou-se com a mulher, e em pouco passava de novo por mim, ajudando-a a amparar o marido, que se arrastava, capengando.
-Vamos, velhinho: te aguenta aí. Cada uma!
Ainda acenou para mim, de longe, se despedindo.

SABINO, Fernando. Um doador universal. Disponível em: < >. Acesso: 08 maio 2017.

(G1 - ifpe 2017) Em relação à linguagem, podemos afirmar que o texto:

A) embora se apresente escrito, possui uma linguagem mais informal e próxima da oralidade, pouco preocupada com a rigidez da norma culta. RESPOSTA CERTA

B) foi escrito com total respeito à norma culta da língua portuguesa, não sendo possível encontrarmos trechos em desacordo com as variedades de prestígio

C) embora apresente expressões coloquiais como “capenga”, “de graça”, “no duro”, a abordagem do assunto “doação de sangue” dá ao texto um tom sóbrio e científico

D) apresenta uma linguagem técnica, porém, de fácil compreensão, uma vez que associa elementos coloquiais a termos formais no decorrer do texto

E) expõe o preconceito linguístico praticado pelo motorista ao chamar o passageiro de “moço distinto”, discriminando a variedade linguística falada por ele

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